Um espelho é composto por três camadas. Primeiro, o mais fácil de enxergar, o vidro, areia, sódio e cálcio misturado com outros componentes químicos que são aquecidos a 1500 graus célsius em um forno industrial. Segundo, a principal característica, o reflexo, uma superfície de metal limpa e super polida composta por prata e produtos químicos que aderem perfeitamente ao vidro. Terceiro, proteção, uma tinta preta aplicada na camada de prata, que é a parte mais delicada do espelho. Além de proteger, impede que a passagem de luz altere o reflexo.
Um processo que aparenta ser simples. Porém, um mínimo descuido pode gerar um pequeno defeito, e pronto: a imagem refletida é deformada. Mas e se, o defeito não for no espelho? O objetivo de olhar para si, é fazer uma autoavaliação, é alimentar a autoestima, ou então, o oposto, é procurar o que outros veem.
Às vezes, a influência das outras pessoas pode alterar totalmente a percepção que alguém possui sobre si mesmo. Palavras ditas também podem impedir de perceber a beleza refletida.
"Você é manchado!"
"Isso é contagioso?"
"Você parece sujo!"
"Você está doente?"
"Não quero ficar perto de você!"
São algumas das palavras ouvidas por 1% da população com uma condição em que a aparência se distingue dos demais: o vitiligo. Porém, se destacar é a maior beleza que você pode possuir, e é assim que Tiago Andrade Graciano enxerga a sua condição.
Tiago é um jovem de 27 anos, natural da cidade de Esperança, Agreste paraibano, e estudante do quarto período do curso de Licenciatura em Educação Física na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Talvez essa breve descrição não seja capaz de revelar o que o fez ser nosso protagonista. Algo expresso em seu próprio rosto diz muito sobre ele. Tiago tem vitiligo, seus olhos são preenchidos pelas marcas deixadas pela condição, sua boca, suas mãos, braços e tudo que os olhos tocam expressam esta, que é uma singularidade, uma marca de sua aparência, mas também da sua personalidade:
“Eu me sinto especial", disse Tiago.
O vitiligo é uma condição que causa manchas claras na pele, é algo que passa a acompanhar as pessoas que o possuem pelo resto da vida, uma característica visual marcante e que fala por si só.
Quando tinha 14 anos, surgiu uma pequena mancha na pálpebra de Tiago. Foi a família dele que notou primeiro. Assim apareceu, do dia para a noite, ou da noite para o dia, algo que de início foi desprezado, afinal, era apenas uma “manchinha”, como ele próprio disse. Essa mancha, apesar de uma estagnação no início, ainda na pálpebra, não parou mais. Logo preencheu seus olhos, o canto da boca, os cotovelos, os joelhos, os pés… Marcado, literalmente, dos pés à cabeça, por algo que não o deixa passar despercebido.
Foi por volta dos 16 anos que entendeu do que se tratava. Com a evolução das manchas procurou uma dermatologista e, simultaneamente, pesquisava sobre o que poderia ser. Encontrou o vitiligo como uma das opções em destaque, o que se confirmou logo depois. Descobriu que a condição não tem cura e que o tratamento podia, ou não, dar certo. Devido a idade, nessa fase inicial do desenvolvimento do vitiligo, Tiago não se sentiu tão afetado, pois segundo ele: “Nesse momento eu ainda não tinha a noção sobre aceitação", porém sente a necessidade de enfatizar:
“É relativo [...] tem pessoas que passam por uma situação mais difícil, e até se odeiam por terem o vitiligo”.
O processo de aceitação, apesar de ter sido fácil para Tiago, não foi do dia para noite. E, infelizmente, as pessoas não têm a sensibilidade necessária para ajudar com essa trajetória e transição tão repentina, principalmente em uma fase tão delicada da vida quanto a adolescência: “Nessa época, algumas pessoas perguntavam muito se era maquiagem, se eu usava alguma coisa no olho, pois estava ficando mais evidente”, relata.
Mas foi quando entrou na universidade, aos 18 anos, que começou a refletir e pesquisar sobre tudo isso, conversar com pessoas que também possuíam vitiligo e buscar ativistas para entender a causa e como eles lidavam com essas questões. Mas, principalmente, para tentar se entender, como pessoa e como alguém que convive com essa condição.
Aceitação talvez seja a palavra-chave de toda essa história, enquanto não entendê-la ou decifrá-la não será possível conviver com o vitiligo de maneira harmoniosa:
“Já teve também casos de eu estar reunido com amigos, colocar a mão em cima da mesa, perceber que estava mostrando o meu vitiligo, [...] e eu recolher a mão e esconder”.
Mas, segundo ele, essa reação não durou nem 10 segundos, pois não fazia mais sentido, já que ele vinha buscando policiar essas atitudes, que iam contra seu processo de aceitação.
Quando nos deparamos com certas situações à nossa volta como, por exemplo, os comportamentos que refletem como nos enxergamos, principalmente quando somos diferentes da maioria, podemos encontrar algumas reações de receio. Tiago retrata bem essa incerteza quando descreve o momento em que estava conhecendo uma garota e decidiu conversar com ela sobre seu vitiligo. Resolveu perguntar se sua condição seria um problema, um empecilho: “fiz questão de ir até a pessoa, como se eu precisasse da aprovação dela. Hoje eu entendo que aquilo foi uma atitude de insegurança”, avalia.
Assim como um dos trechos da música “Ventos de Netuno” da banda brasileira 5 a seco, que diz: “Para poder viver o amor tem, primeiro, que se amar”, Tiago retratou em sua fala o maior objetivo do caminho ao qual vinha percorrendo: o da aceitação, carregando, também, o peso da superação de uma insegurança.
Durante esse processo, a busca por identificação e inclusão se tornou algo de extrema importância. Felizmente, ele conseguiu se encontrar nas causas de alguns projetos e pessoas como, por exemplo, o modelo, músico e influencer Vitor Maccla e a criadora de conteúdo digital, Maika Celi, do Instagram “Vitiligo, meu lugar ao sol”, que mostram em suas redes sociais, seu vitiligo como motivo de orgulho e também como uma forma de beleza.
Conhecer e se familiarizar com as pessoas que possuem vitiligo é extremamente necessário. Por isso, também é celebrado em 25 de junho o Dia Mundial do Vitiligo. É um dia especial para conscientizar sobre a condição, e não para combater. Como o próprio Tiago relata, muitos confundem a função da data, tornando necessário deixar o objetivo dessa data explícito para que não ocorram equívocos que sustentam estereótipos.
Tiago Andrade Graciano é um jovem que precisou conviver com o fato de que ele não era o que o mundo considera “normal”. “As nuvens”, como ele fala, estampadas por todo o seu corpo representam a sua identidade. É o que o impede de esquecer isso, ou que qualquer outro esqueça. A lembrança constante em contraste com outras marcas que ele escolheu ter em sua pele, as tatuagens, que mostra sempre com orgulho. Pode-se dizer que não foi o vitiligo que se mostrou ao Tiago, mas sim que ele se apossou dessa condição, ele fez das manchas únicas e especiais:
“Eu gosto de parecer diferente, é o meu charme”.
Foram suas manchas que lhe mostraram um novo caminho, que proporcionaram uma nova forma de enxergar o mundo e as pessoas à sua volta. Mas, principalmente, foram essas manchas que o conduziram a se perceber sob uma ótica mais valiosa e genuína de si diante do espelho. E como se perceber sem aquilo que lhe faz 1 em 100? Afinal, está consigo, em sua pele, faz parte de quem foi, de quem é e de quem ele irá se tornar.
“Não sei mais como eu seria sem o vitiligo”, finaliza Tiago.
Esse é Tiago, e esse é o seu vitiligo, motivo de orgulho, beleza e sua fonte de motivação. Uma forma de encontrar forças na sua própria singularidade. Sempre com um sorriso alegre, um carisma cativante e uma forma brincalhona de se autoavaliar, Tiago nunca se deixa ficar preso entre os muros daquela prisão imposta pelos padrões da sociedade. Jamais se permite distorcer sua própria imagem por essas imposições e abraça o seu diferencial quando diz:
“Se você olha para mim com olhos de nojo, a mancha não está em mim, cara, a mancha está em você”.
Fotografia: Evelyn Gomes, Nilo Barreto e Manuel Duarte
Reportagem e texto: Evelyn Gomes, Nilo Barreto e Manuel Duarte
Supervisão editorial: Rostand Melo
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