Michelle Chevrand (39), nasceu em Niterói (RJ) e é formada em Jornalismo pela PUC-Rio. Desde o início do curso já almejava trabalhar em uma emissora de TV, com trabalhos de cunho esportivo. Atingiu sua meta e conquistou uma trajetória marcante na área. Após trabalhar no filme “Pelé” para a plataforma de streaming Netflix, Michelle saiu da zona de conforto e, junto ao Aly Muritiba, realizou a adaptação para a Globoplay do podcast Projeto Humanos - O caso Evandro de mais de 40 horas do jornalista Ivan Mizanzuk. Recebeu a missão de entrevistar mais de 30 testemunhas para os 7 episódios sobre o caso que chocou o Brasil no ano de 1992. Apesar da agenda cheia com a cobertura das Olimpíadas em Tokyo, Michelle conseguiu um tempo para nos falar um pouco mais sobre ela e sobre o documentário "O Caso Evandro", e quais foram os desafios que tornaram tudo isso possível. Confira na entrevista:
Coletivo F8 - Como surgiu o convite para dirigir a série documental Caso Evandro?
Michelle Chevrand - Primeiro o Aly foi convidado. Como ele trabalhou 7 anos como agente penitenciário e começou a estudar cinema depois disso, ele fez três documentários na prisão porque tinha acesso. Os documentários dele rodaram o mundo em festivais. Então o Aly tem sido chamado para se envolver com projetos ligados à temática de crime, facções criminosas e penitenciárias. Enfim, o Aly foi indicado para dirigir a série, só que ele tem perfil mais voltado para a área de ficção. Eu seria diretora assistente do Aly, mas como ele estava muito ocupado com as gravações do seu longa "Deserto particular", filmado na Bahia, eu assumi a função de codireção e ele me promoveu a diretora pela necessidade de se tomar decisões, então acabei assumindo um pouco mais a linha de frente e quando ele chegou, a gente se dividiu, eu fiquei mais focada em fazer as pautas e o Aly aprovando coisas de direção que a gente já tinha discutido, tipo figurino, carros… e assim foi.
F8 - Como se deu o processo de reunir as testemunhas e de que maneira isso impactou no processo de gravação?
A série é baseada no podcast de grande sucesso que já tinha contatado algumas pessoas. Diferente do podcast, que é praticamente só o Ivan contando a história, na série, precisávamos contar essa história de maneira diversa e mostrar quem são os personagens. Uma das coisas que a gente sabia de cara quando o roteiro foi desenvolvido, era que precisávamos ter as versões da defesa e da acusação na série. Então a gente trabalhou e fechou as entrevistas em função disso. Foram 35 entrevistados, se não me engano, e foi importante ter ouvido todas essas pessoas. A gente teve ajuda de uma grande pesquisadora, Beatriz Monteiro, a primeira pessoa que começou a descobrir as pessoas que estão vivas ou mortas, de onde eram, onde moravam, se topariam dar entrevista, um mapeamento completo. Ela começou esse trabalho e eu ajudei um pouco a localizar as pessoas, unimos forças. Depois que a gente conseguiu falar com todo mundo, Aly e eu fizemos um trabalho difícil que foi entender o que incluir no roteiro, que entrevistados poderia prescindir. A gente conseguiu chegar àqueles 35 e depois que a série acabou, outras pessoas nos procuraram, pois achavam que deviam dar entrevista, só que elas não sabem quão difícil foi entrevistar tanta gente.
F8 - No capítulo 6 da série, durante o relato de Celina Abagge, há um momento em que a mesma se sente desconfortável com os homens dos bastidores. Qual a sensação de permanecer no local, ouvindo o relato de um trauma tão profundo?
O que aconteceu foi que a Celina me ligou pensando em desistir da entrevista e disse que se ela fosse falar sobre as torturas, não ia querer falar na frente de homem, então a gente combinou, combinei com o Aly, com o pessoal da equipe, que eles iam sair da sala quando a gente fosse começar a falar sobre as torturas, foi o que a gente fez. No momento em que ela fala “Ah, eu não consigo falar na frente de homem” e aí eles saem, isso a gente já tinha combinado previamente. Mesmo eu sabendo e tendo me preparado psicologicamente pra isso, tive que segurar muito a emoção porque eu sabia que se eu começasse a chorar, ficasse triste, talvez ela não falasse, então eu fiquei olhando no olho dela e o tempo todo pensando que eu precisava dar essa força pra ela. Eu precisava ficar forte para que ela ficasse forte. Foi bem difícil, no final do dia a sensação era de exaustão, não era um cansaço físico, parecia que eu estava sem energia nenhuma, eu "tava" mal, cheguei em casa e eu só queria deitar e dormir. Vendo o resultado, vi como foi importante para a série, ter esse momento e eu estar lá. Se fosse só um diretor, se fosse só o Aly, a gente não teria esse momento tão importante.
F8 - De que maneira surgiu a ideia da produção da abertura da série, no que diz respeito ao foco dado aos elementos do caso, ao invés da identidade das crianças envolvidas?
Isso foi uma diretriz desde o início: não expor as crianças porque a gente sabia que já seria muito dolorido pra família. Então a gente tentou preservar o máximo o rosto, a imagem dos meninos. Para a abertura, a gente se inspirou em algumas séries, como The Jinx, por exemplo. A abertura tem várias referências, como a Mindhunter, mas o foco era ser mais subjetiva e menos objetiva.
F8 - Como foi trabalhar em um caso tão sensível? Qual foi a cena que mais marcou?
Eu sabia que ia ser muito difícil porque é um tema muito pesado. Depois que a gente começou a filmar foi mais leve do que eu imaginava porque a gente tinha uma equipe muito querida, muito parceira, e isso ajudou a não ficar tão pesado, não ficar tão sofrido. A gente tinha essa sensação de esgotamento, de ficar mal mesmo, mas acabou sendo mais tranquilo em função de ter esse suporte que a gente deu uns aos outros. A cena que mais me marcou foi a do matagal, onde Evandro foi achado. Na primeira vez que a gente foi lá, eu fiquei impactada, achei muito triste, muito estranho, ainda é um lugar muito ermo e pensar que o corpinho da criança foi deixado ali é triste demais. Então eu acho que o matagal foi sem dúvida, energeticamente, o lugar mais pesado.
F8 - Como foi a experiência de sair da zona de conforto da sua área e partir para um segmento investigativo?
Trabalhei no documentário do Pelé como assistente de direção, fiz o documentário da família Grael, Gerações da Vela. Existe uma tensão no ar obviamente quando você está filmando porque pode dar errado, o entrevistado pode não aparecer, o tempo pode não ajudar. Enfim, uma série de coisas, mas obviamente são temas muito mais leves e figuras mais fáceis de lidar. Acho que a sensibilidade de estar lidando com True Crime é justamente de mapear as pessoas antes mesmo da entrevista e perceber até onde a gente pode chegar, como se referir a determinados assuntos. Essa delicadeza, de não ter uma postura acusativa e sim aberta a ouvir, que mesmo discordando, não rebater, escutar todos os lados da história e realmente ouvir com carinho, sem julgar. Acho que isso é muito importante num caso de uma série True crime, investigativa como essa.
F8 - Em entrevista concedida ao Fantástico, você afirmou que a série não é sobre o crime em si e sim sobre os desdobramentos que aconteceram para a resolução do crime e que isto reflete muito a sociedade brasileira. Em qual sentido a série torna-se esse reflexo da sociedade?
Acho que a gente pode fazer uma conexão muito importante do Brasil de 1992 com o atual, em termos de pensar em como as instituições são frágeis e como essa fragilidade permitiu que essas pessoas fossem presas, julgadas e esse crime fosse tão mal solucionado. Nesse sentido, hoje em dia a gente vê tantas fake news e tanta coisa acontecendo, essas instituições muito fragilizadas. Não tem um papel importante de pressionar o Governo Federal, por exemplo, em relação a Covid, a pandemia, por exemplo. Isso eu acho que reflete de fato, e o preconceito, o conservadorismo. Respondendo sobre a série ser um resumo do Brasil, é muito o reflexo da sociedade, tudo o que a gente tá vivendo até hoje. Como que as instituições compraram essa tese de acusação e... foram até o final. Pessoas foram presas, ficaram presas, cumpriram suas penas. Essas instituições falharam e falham até hoje.
F8 - Com uma possível reabertura do caso, a gravação da série será retomada?
Acho bem improvável que a gente reabra as filmagens. O que a gente fez quando Osvaldo Marcineiro apareceu, e algumas outras pessoas importantes como Roberto Requião (governador do Paraná de 1991 a 1995, no período em que ocorreu o "caso Evandro"), foi na verdade, um pedido da Globoplay para a gente filmar um episódio extra com essas pessoas. E a gente filmou esse episódio que já foi ao ar. Foi muito legal, foi meio correria fazer tudo em três semanas, mas deu certo. Ficamos bem felizes com o resultado.
F8 - A série tem como ponto de partida o podcast de Ivan Mizanzuk e seus estudos. Quais foram os desafios para adaptar uma história real já contada em um formato midiático para outro formato? Além das informações, foi pensada alguma forma de preservação da linguagem empregada no podcast?
Na série nós temos ferramentas narrativas muito mais amplas do que as que o podcast tem. O podcast tem o aúdio e a gente tem o visual. Sabíamos que tínhamos um material de arquivo muito rico que ia ajudar a contar a história. Fora o fato de uma vez que se visualiza a imagem de um dos entrevistados, a gente entende quem é, não precisa ficar representando toda hora a pessoa. Eu acho que isso é uma coisa muito interessante das mídias, o fato de se complementarem. Quando a gente ouve o podcast, fica imaginando, a gente não vê. As pessoas viram Guaratuba naquela época, as pessoas imaginavam mas elas não viam. Quando viram o Diógenes, muitas pessoas diziam "nossa, achava que era mais velho", "achava que era mais novo", "nossa, imaginei outra pessoa". Então, essa eu acho que foi a mágica da série. A mágica do podcast é usar o recurso da imaginação e a da série é ir lá e trazer o elemento visual.
F8 - Com a repercussão da série, você considera o gênero True Crime como um nicho de mercado com bom potencial no Brasil?
De fato, virou um assunto muito comentado e deu um "boom" no tema, e todo mundo pedindo "produzam mais séries true crime, por favor", "tem muito true crime gringo mas não tem true crime brasileiro". Então, veio o lançamento da Elize Matsunaga, da Netflix, também trazendo o tema e acho que a tendência é do true crime crescer, o que é muito bom. Uma temática boa de trabalhar para nós documentaristas. Existe uma demanda de público, o caso Evandro virou um assunto da internet, das mídias, das redes sociais. Foi bem legal, com certeza vem mais true crime por aí.
Nesse sentido, entendemos o quanto de informações foram descobertas somente após a iniciativa de Ivan, e as possibilidades que temos para nos permitir encontrar nossa própria opinião. É interessante ampliar os horizontes no que diz respeito à fontes e buscar entender o andamento dos fatos no podcast e na série que estão disponíveis nas plataformas de streaming GloboPlay e Spotify.
ATUALIZAÇÃO DO CASO:
De acordo com o portal G1 Paraná, a defesa de Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares e Osvaldo Marcineiro protocolou, na última segunda-feira, 06 de dezembro de 2021, um pedido de revisão criminal das condenações dos três pela morte do menino Evandro.
O pedido baseia-se nas gravações das confissões, publicados em 2020 pelo Projeto Humanos. Os áudios completos mostram os acusados recebendo instruções para confessar os crimes, em trechos que teriam sido omitidos na versão apresentada durante os julgamentos.
De acordo com o pedido, as provas são ilícitas porque foram obtidas mediante tortura e influenciaram o restante do processo. Os advogados pedem que os acusados sejam absolvidos e indenizados.
FICHA TÉCNICA:
Produção: Cecília Marinho, Ester Bezerra, Maria Teixeira, Paloma Mahely
Revisão: Ada Guedes
Supervisão editorial: Rostand Melo
Agradecimentos: Kleyton Canuto e Rostand Melo
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