Ela nasceu em 1939. Mulher, preta, pobre, semianalfabeta e da roça. Seu nome é Maria da Guia, seu sobrenome, resistência. Aos dois anos de idade ficou órfã, uma das primeiras perdas das muitas que acumularia ao longo da vida. Adotada por uma senhora bondosa da cidade de São Sebastião de Lagoa de Roça, no agreste da Paraíba, foi obrigada a separar-se dos seus irmãos.
Não teve vida de princesa. Sua mãe de criação era muito bondosa, de coração enorme, mas de armário vazio. Ao entrar para essa nova família precisou ajudar nas despesas do dia a dia. Lá vai, então, a menina Guia andar pelas ruas equilibrando na cabeça um balaio repleto de temperos de cozinha (colorau e alho) para garantir o seu sustento.
Sua infância e adolescência foi toda assim. Quando não era dia de ir para a rua, ia para o roçado plantar milho, feijão e batata. Sem tempo e sequer recursos para estudar, concluiu apenas a cartilha do ABC. Uma amiga sua, um pouco mais velha, separava algumas folhas do seu próprio caderno e a ensinava a ler e fazer alguns rabiscos. A sua infância não teve luxo nem privilégios. Sua boneca era a enxada.
Os anos se passaram e Guia, já adulta, resolveu casar. Aos 21 anos conheceu e se apaixonou por Francisco Guilhermino, um feirante da cidade de Campina Grande, para onde ela rapidamente mudou-se. Aos 22 trouxe ao mundo sua primeira filha a qual batizou com o nome de Eliane. Ali nasceu também uma mãe e mãe não só de uma, mas de dez. Elineusa, Eliete, Edvaldo, Maria do Carmo, Maria Gorete, José Carlos, Ana Lúcia, Davi e Daniel.
A maternidade lhe deu ainda mais força e garra para viver e vencer na vida. Foi lavadeira, passadeira e empregada doméstica até que conseguiu, com muito sacrifício, um trabalho de carteira assinada para serviços gerais em uma feirinha comunitária onde trabalhou por 20 anos até se aposentar, sendo sete desses a mais do que deveria. Coincidentemente, a feirinha fica localizada no Jeremias, bairro onde criou todos os seus filhos e morou durante 39 longos anos que lhe fizeram acumular diversas memórias afetivas.
Aos 45 anos ficou viúva. Aos 70 perdeu seu primeiro filho, contrariando a ordem natural da vida. Em um intervalo de tempo de menos de 40 dias se foram mais dois. Apesar do sofrimento, ela seguiu em frente por que a fé sempre lhe manteve de pé. Quando reúne a sua família para um simples almoço de domingo mais parece uma festa. São quase 30 netos e oito bisnetos correndo pela casa.
Em 2021, o cenário de pandemia fez com que os encontros diminuíssem a frequência e trancou Guia dentro de casa. Ela, que sempre foi acostumada a estar no coletivo, teve que, por muitos meses, desfrutar da sua própria companhia. Foi aí que ela se reinventou, como já fez outras tantas vezes na vida.
Comprou caça-palavras, quebra-cabeças, fez crochê, criou um perfil no Facebook e ficou encantada quando descobriu a possibilidade de realizar uma chamada de vídeo com vários participantes do grupo da família no WhatsApp. O que mantém o sorriso no rosto dessa mulher é a esperança da vacina para todos e o desejo do reencontro. Contrariando todas as estatísticas, Guia é aquela que, pelo histórico de vida, tinha tudo para dar errado, mas deu certo.
Tudo isso só aconteceu porque eu nunca desisti de acreditar nas pessoas. Nunca tive inimizade com ninguém. Quando tinha o que comer, agradecia. Quando não tinha... fazer o quê? Comia farinha, bebia água e ia dormir para no outro dia batalhar ainda mais e conseguir. Assim criei todos os meus filhos. Já se foram quatro, não foi fácil nem vou te dizer que esqueci deles. Às vezes me acordo, vejo um retrato, fico triste, choro um pouquinho, mas vou para os meus afazeres do dia a dia. Tenho outras pessoas que eu também preciso dar o meu amor, a vida não pode parar. Crio uma netinha com sete anos, filha do meu caçula que morreu, ela é mesmo que ser uma princesa para mim. Minhas mãos são calejadas e meus cabelos já são brancos, mas meu coração ainda é de criança.
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FICHA TÉCNICA
Fotografia e reportagem: Arthu Alexandre
Monitoria e redes sociais: Andresa Costa , Oma Roxana e Louise Viana
Supervisão editorial: Rostand Melo
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