OBSERVATÓRIO: Fotos de Olena e Volodymyr dividem opiniões sobre a forma como ajudam (ou não) a retratar o terror da guerra na Ucrânia
Baudrillard inicia sua célebre "Simulacros e Simulação" citando a fábula de Jorge Luíz Borges sobre em que cartógrafos são incumbidos de desenhar um mapa perfeitamente fiel do território do Império em que moram, mas tão fiel que cobre exatamente toda a extensão do lugar. Após o declínio do Império, as pessoas que passam naquele lugar, não sabem mais dizer se estão pisando em suas ruínas ou no simulacro em forma de mapa. O que Baudrillard propõe é que, hoje, para nós, só restou o simulacro, que se tornou mais real que a realidade, se tornou hiper-realidade. A guerra dos Zelensky na Vogue é hiper-real?
Em ensaio para a revista Vogue, o casal Olena e Volodymyr Zelensky posam para as lentes da fotógrafa Annie Leibovitz, com figurinos chiquérrimos e cenários que relembram produções hollywoodianas, como Dunkirk (2017), de Christopher Nolan, ou Saving Private Ryan, de Steven Spielberg, mas são resultado da cenografia de uma guerra real, na verdade. O trabalho acompanha texto da repórter Rachel Donadio e foi realizado neste mês de julho, com revisão de publicação na edição de outubro da magazine.
Leibovitz é largamente referenciada como uma das mais influentes profissionais da fotografia e conhecida pelo caráter intimista e provocador que consegue imprimir através de suas lentes. Tem fotos icônicas no currículo, como o registro que capturou de Yoko Ono e John Lennon, cinco horas antes da sua morte.
A Vogue nasceu como uma proposta de unir abordagens artísticas ao sentimento aristocrático nova-iorquino, conversando diretamente com as classes americanas mais abastadas. Sua trajetória ao longo da história a consolidou como referencial para as tendências de comportamento e moda, contando com a contribuição de grandes nomes, inicialmente, da ilustração e, a posteriori, da fotografia. Capas polêmicas, como esta atual do casal Zelensky, não são raridade.
O motivo para o ensaio da primeira-dama e do presidente ucraniano ganhar tanta repercussão está em trazer uma narrativa fotográfica baseada em imagens carregadas de estilo para ilustrar o que a matéria chama de “Retrato de bravura”. De tal forma, que quase inevitavelmente suscita reflexões controversas sobre a forma como Olena e Volodymyr parecem encarar uma guerra que tem impactado todo o planeta.
Em uma das fotos, a primeira-dama ucraniana posa sentada nos degraus de um salão palaciano convertido em bunker, com diversos sacos de areia entrincheirados, enquanto um soldado aparece a postos, armado e equipado, de costas para o ponto de vista. Olena, aqui, parece muito mais uma modelo de uma marca de luxo em uma campanha milionária do que alguém preocupado em mobilizar o mundo para defender e salvar seu povo.
Em outros exemplares, o casal Zelensky aparece abraçado ou de mãos dadas em cômodos cinzentos do que parece ser a residência presidencial, bem vestidos, penteados e dirigidos, com o olhar fixo para a lente da câmera. Em talvez a captura que mais repercutiu, Olena está muito bem indumentada com um sobretudo azul, no Aeroporto Antonov, em Hostomel, rodeada por um grupo de soldados ucranianos armados, em frente aos escombros de um avião.
O contexto de aparições de Volodymyr na mídia, julgadas por alguns críticos como teatrais, acaba fatalmente se somando a mais essa execução para a Vogue. Isso acaba servindo como mais um motivo para as críticas de que ele se porta, muito além que um estadista e em um país em crise, como um astro internacional.
Há de se lembrar que Volodymyr, antes de atuar na política, atuava em programas de comédia na TV ucraniana que, inclusive, contavam com Olena como roteirista. O texto de Donadio conta que ser primeira-dama não era um papel que ela quis desempenhar inicialmente. Se posicionou contra a investida do marido de ingressar na política, mas, hoje, mostra-se mais engajada com o novo papel que Volodymyr e ela têm a desempenhar. E, talvez, neste ponto, more uma questão-chave.
O material assinado por Leibovitz, suportado pelo texto de Donadio e publicado pela Vogue aparenta estampar uma versão glamourizada do terror e da guerra, desconsiderando a realidade de mutilações e abusos físicos e morais que este momento de fato representa. Mas essa é só a superfície. Os Zelensky sabem a força que a marca Vogue e o nome Leibovitz têm de agendar temas no debate público global e o holofote tanto pode ser uma paixão deles, quanto uma forma de garantir a atenção do mundo. O ostracismo, nesses casos, pode ser pai da derrota.
O texto e a imagem tentam envernizar, principalmente, Olena de humanidade e altruísmo. Ela chega a dizer, em certo ponto, que acredita que ninguém esteja ciente de como conseguem lidar emocionalmente com a guerra. Talvez o tom da reportagem não tenha ajudado tanto neste quesito. Contudo, por fim e de qualquer forma, glamourosa ou não, essa guerra que sai na capa da Vogue definitivamente não é a mesma que tira a vida das pessoas ou as expulsa para o refúgio desconhecido.
FICHA TÉCNICA
Texto e Edição: Renato Fragoso
Imagens: Annie Leibovitz / Vogue
Supervisão editorial: Rostand Melo
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